sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Código Florestal e as áreas urbanas

27/10/2011
"Uso do solo urbano tem que mudar", diz relator

Por Tarso Veloso | De Brasília

Ruy Baron/Valor/Ruy Baron/Valor

Viana: "Os ministros da Agricultura falaram para não mexermos no texto votado na Câmara e os do Meio Ambiente pediram para mexermos o máximo possível"

A menos de um mês do prazo fixado para a entrega da proposta de um novo Código Florestal, o relator do projeto na Comissão de Meio Ambiente no Senado, senador Jorge Viana (PT-AC), aumentará a polêmica que cerca o texto ao decidir pela inclusão de normas para as áreas urbanas. "Temos que ter uma regra rígida daqui para a frente no uso de solo urbano para que não tenhamos que seguir contando as vítimas", defende.

O tema foi evitado pelo relator na Câmara, deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP), para dar mais celeridade ao novo código e porque há várias iniciativas de alteração do atual Estatuto das Cidades em tramitação no Congresso.

Viana também decidiu incluir outros pontos controversos em seu relatório de mérito - ou seja, o texto que dará a palavra final antes do plenário do Senado. Um deles é a manutenção do poder de "instâncias colegiadas" como o Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), combatido e contestado pela bancada ruralista por legislar em questões ambientais.

Em entrevista ao Valor, Viana afirma que o texto aprovado pelos deputados, em maio deste ano, gera insegurança jurídica ao não esclarecer como o desmatamento já ocorrido será resolvido e quais serão as regras daqui para frente. Para corrigir o que considera um "equívoco", o senador criará disposições transitórias para tratar do passado e disposições permanentes para o futuro. O texto deve estar pronto para ser submetido ao plenário até o fim de novembro, prevê.

Desastres se multiplicam por conta de ocupações indevidas das margens dos rios e das encostas urbanas"

Ex-governador do Acre, berço da chamada "florestania", Jorge Viana diz que, embora o Ministério da Fazenda seja contra, "não abre mão" de criar incentivos financeiros e tributários à recuperação de reservas legais. O senador afirma que não vai prever cobrança de multas de desmatamento a quem se comprometer a recuperar as áreas degradadas, inclusive para aquelas já emitidas pelos órgãos ambientais. E se dispõe, em uma espécie de "anistia", a transformar as autuações na chamada prestação por serviços ambientais via recomposição de florestas. "Disso o Senado não abre mão", afirma. "Para quem insistir em desmatar, os rigores da lei".

O novo código contará com regras gerais, mas os Estados poderão ajudar a legislar em caso de eventuais dúvidas. Assim, seriam decididos regionalmente os procedimentos para cumprimento do texto. Mas Viana diz que não modificará os índices das reservas legais em cada bioma. Para evitar dissensos, diz ele, as reservas ficam em 80% na Amazônia, 35% nos Cerrados e 20% nas demais regiões.

Veja a seguir os principais trechos da entrevista ao Valor:

Valor: Quais problemas o Código Florestal deve resolver?

Jorge Viana: Existe uma necessidade de nós incluirmos questões que não foram tratadas na Câmara e avançarmos nas discussões. É o caso das florestas, da produção familiar e das cidades. Quando o primeiro código foi feito, o Brasil era um país rural. Nós tinhamos, na década de 60, mais de 55% da população vivendo nas áreas rurais e em torno de 45% da população nas cidades. O Brasil é outro agora. Temos 84% da população vivendo em áreas urbanas e 16% nas rurais. O Código Florestal, quando foi feito, enxergava a cidade como uma extensão da área rural. E nesses anos todos a cidade não enxerga o Código Florestal. Eu sou defensor de que a questão das cidades, do ponto de vista da regra geral, tem que ser tratada no código florestal.

Valor: Por quê?

Viana: Estamos vendo uma parcela enorme da população, principalmente mais pobre, correndo risco por conta das ocupações indevidas nas margens dos rios e nas encostas. Com isso, os desastres naturais se multiplicam por conta do tipo de intervenção urbana que ocorreu. Vamos deixar muito explícito nesse novo código as áreas consolidadas urbanas para sair dessa insegurança que temos. Devemos ter as questões bastante claras. E isso leva em conta as áreas de risco. E em relação a isso não tem discussão. Nós não podemos deixar uma parcela da população em risco e, novamente, seja em encosta ou mesmo margem de rio, seguir contando as vítimas. É importante que tenhamos um regramento rígido daqui para a frente no uso de solo urbano.

Valor: Como foi o trabalho no Senado?

Viana: Estamos convencidos de que o Senado já tem um acúmulo suficiente de informação, de sugestões e nós ouvimos, exaustivamente, diferentes setores da sociedade. A Câmara já havia feito uma parte, mas ouvimos a comunidade técnico-científica em várias audiências e o trabalho realizado pelas comissões de Constituição e Justiça, Agricultura, Ciência e Tecnologia e Meio Ambiente ajudou a mim e ao senador Luiz Henrique a deliberar da melhor maneira.

O pequeno produtor recebe uma multa que é duas ou três vezes o valor da propriedade e não paga porque não pode pagar"

Valor: A lei é complexa porque tem que tratar do passado e regular as atividades daqui para a frente. Como o senhor estruturou as normas para considerar os dois momentos?

Viana: O senador Luiz Henrique está incorporando sugestão que apresentamos de criar disposições transitórias para tratar do passivo do passado e disposições permanentes, uma lei absolutamente clara para a frente, com regras bem definidas. Na Câmara veio tudo junto. Um dos problemas do texto que foi votado pelos deputados é que reuniu as exceções transitórias para tratar do passivo com as regras daqui para a frente. Isso é inconciliável. Você fica com a lei muito ruim no sentido de dar garantias no futuro. E é ruim até para resolver o problema para trás. Com essa separação entre passado e futuro, ficam mais claros os dispositivos que vamos oferecer ao Brasil para resolver o problema do passivo ambiental e também tratar a consolidação nas cidades.

Valor: O código vai dar anistia aos desmatadores?

Viana: Não. O Brasil tem um problema hoje. Só 1% das multas aplicadas nesse setor são pagas. A grande maioria das propriedades é de agricultores familiares. E se tem um povo que não gosta de ter dívida é o pequeno produtor. Nossa lei atual tem falhas graves. Ela permite que um fiscal chegue a uma propriedade que tem uma situação que não está completamente de acordo com a lei e precisa de reparo e mete uma multa que é duas a três vezes o valor da propriedade. Essa multa não é paga porque ela não pode ser paga. Sou contra instrumentos como esse.

Valor: Se não haverá anistia, como essa dívida será cobrada?

Viana: Temos que resolver isso definitivamente. Vamos encontrar uma solução não no propósito de anistiar, mas no modo de criar um incentivo para que elas possam vir para a regularização. Vamos dar incentivos econômicos para que você faça recomposição de áreas perdidas seja de Áreas de Preservação Permanente (APP) ou reserva legal. Vamos ajudar quem quiser se regularizar. Aqueles que cumpriram a lei antiga têm de ter um tratamento diferenciado para conseguir melhores juros, nas políticas públicas. Os outros possuem um déficit do ponto de vista da legislação e querem imediatamente se regularizar terão que ter incentivo. Isso é a transformação da multa que ninguém paga em serviço ambiental. A multa era uma tentativa de reparar o dano. Se nós vamos repará-lo, a multa deixa de existir. O que tem que ter é um chamamento para regularização.

Valor: Estará na própria lei um mecanismo para fazer isso?

Viana: Aqueles que estão em situação irregular e querem se regularizar, você tem que estender a mão para que venham. Aqueles que querem seguir na ilegalidade, aí vira caso de polícia. O equívoco é que nos últimos anos o Brasil tem tratado todas essas questões como caso de polícia e isso está errado. Não se pagam multas e nem resolvem o problema. A questão ambiental do uso do solo no Brasil não é um caso de polícia generalizado. É um caso de política. Temos que fazer a boa política, de proteção dos recursos, de bom acolhimento para quem quer se regularizar. E aqueles que querem seguir o caminho da destruição, o rigor da lei. Quando o rigor da lei não for cumprido, vira caso de polícia.

Valor: Qual sua expectativa para a votação?

Viana: Penso que esse relatório pode ter uma votação surpreendente no Senado e voltar para a Câmara fortalecido. Estamos fazendo um trabalho suprapartidário. Lá na Câmara, os deputados terão um mês para escolher entre essa proposta do Senado e a proposta que eles votaram. No nosso entendimento, necessitou e necessita desses ajustes que nós começamos a fazer agora. As mudanças começam agora, nesta semana, com esse relatório do senador Luiz Henrique. Eu pretendo - já que vou ter mais tempo - seguir aprofundando essas mudanças que o relatório do Luiz Henrique já fez.

Valor: E a disputa entre ruralistas e ambientalistas?

Viana: Nós sabemos que esse debate ficou muito tensionado na Câmara. Houve um confronto muito forte de setores ruralistas e ambientalistas e acho que não foi bom para o país. Nós fizemos uma audiência com encontro de ex-ministros do Meio Ambiente e da Agricultura. Os ministros da Agricultura falaram para não mexermos no texto votado na Câmara sob pena de o Brasil entrar em uma fase de atraso no setor produtivo. Os ministros do Meio Ambiente disseram para mexermos o máximo possível no texto sob pena de o país ficar fragilizado do ponto de vista da proteção. Aparentemente, não havia diálogo nem saída. As conversas foram rompidas, mas o Senado reconstruiu essa ponte.

Valor: Essa ponte levou a que modelo?

Viana: Conversamos com o setor ambientalista, produtivo, da agricultura familiar, ruralista e empresarial. Estamos conseguindo, por meio desse diálogo, buscar um entendimento que faz do novo código duradouro. E que crie as condições para que o Brasil seja um exemplo para o mundo na área de legislação ambiental. Além disso, queremos que se dê segurança jurídica para os produtores que querem trabalhar na produção e na criação, para o Brasil também se firmar como um dos maiores produtores do mundo.

Valor: E as eventuais disputas?

Viana: O texto que foi votado na Câmara traz insegurança inclusive para o setor produtivo. Do jeito que ele está escrito passaria a ser motivo de muitas ações no judiciário. Hoje tem uma coisa ruim no Brasil que é a judicialização de tudo. Da política, do futebol, agora até do Congresso nas últimas décadas. Ouvi de um ministro que a culpa disso é do próprio Congresso que recorre ao supremo para deliberar sobre algo que é prerrogativa do legislativo. Acho que esse defeito o texto aprovado na Câmara carrega junto com ele.

Valor: Qual a solução para esse problema?

Viana: Nas omissões da lei vamos dar ênfase às instâncias colegiadas. O texto que veio da Câmara, de alguma maneira, tira o poder destas instâncias. Eu acho que a lei sendo bem clara você não precisa recorrer tanto à regra fora. Isso tem que ser evitado, mas na dúvida, vamos recorrer às instâncias colegiadas.

Valor: O tamanho da área de reserva legal vai mudar?

Viana: Acho que o tamanho já veio da Câmara assim e não devemos mudar, sob pena de entrar em uma discussão ruim da proteção dos recursos naturais. Certamente ficará como está: 80% de reserva legal na Amazônia, 35% na área da Amazônia Legal e mais 20% nos outros biomas. Acho que isso é uma conquista do Brasil e mexer nisso é buscar o dissenso. Por incrível que pareça, pretendemos ter uma colaboração de Estados e municípios. Vamos estabelecer a regra geral, que poderá ser flexibilizada, com critérios bem claros e estabelecidos. Mas a operacionalização disso tem que ser local.

Valor: E a recuperação das áreas degradadas?

Viana: Temos que encontrar e desmontar mitos, por exemplo, falar que preservação é incompatível com produção. O maior (mito) deles, porém, é que é caro fazer a recuperação das áreas degradadas. Existem áreas muito degradadas que deverão ter algum custo. Mas a grande maioria, às vezes, não precisa nem cercar. Com o isolamento dessas áreas, no ponto de vista de atividades de manutenção da pastagem, ela vai virar um pasto sujo. Depois uma capoeira e finalmente se recompõe. A Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ) e outros centros de pesquisa já fizeram estudos que comprovam que é possível fazer. Tem lugar que o custo é quase nenhum. Um outro mito que existe é que setores do governo dizem que não se pode dar incentivo por que compromete orçamento. Não é assim.

Valor: Como resolver sem afetar os planos do governo, por exemplo, na área econômica?

Viana: Com inteligência, podemos criar os incentivos sem danificar as metas de ajuste economico do governo. Podemos facilitar e fazer dos investimentos na recomposição ambiental do Brasil um bom negócio. Nós podemos criar uma quantidade enorme de incentivos econômicos sem comprometer orçamentos da União, Estados e municípios. Temos os fundos constitucionais, temos um fundo da Amazônia e uma ampla gama de receitas. Sou favorável a usar uma parte das receitas que o Brasil vai ter com o fim das concessões de hidrelétricas, por exemplo, que podem gerar até R$ 30 bilhões por ano. Uma parte desses recursos pode servir para a redução da tarifa de energia, mas uma pequena parte poderia vir para as unidades de conservação. Com isso, criaríamos um programa de recomposição de áreas degradadas fantástico.

Valor: E a agricultura familiar?

Viana: A ideia da agricultura familiar no Brasil está vinculada a um tratamento de quatro módulos. O país hoje possui mais de 5,2 milhões de propriedades rurais. Desse número, 4,8 milhões estão abaixo dos quatro módulos. Com esse sistema, existe um problema da variação de tamanho de região para região. Em alguns locais, um módulo equivale 400 hectares e, em outros, apenas 40. Uma pessoa que possui pouco mais do limite de extensão de terra está fora da agricultura familiar. Para resolver esse impasse queremos criar um incentivo para que elas possam vir para a regularização.

Valor: Isso não pode se confundir com anistia?

Viana: Um dos desafios desse código é trazer a agricultura familiar para a legalidade e, ao mesmo tempo, não fazer isso como uma anistia. Não precisa ser isso, mas devemos tratar o pequeno proprietário de maneira justa. Ele é o mais frágil na cadeia de produção e por isso merece tratamento diferenciado.

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