segunda-feira, 8 de março de 2010

Aquecimento global está chegando à Justiça

O aquecimento global chegou à Justiça. A Micronésia, uma federação formada por 600 ilhas no Pacífico, a nordeste da Austrália, questiona os planos de modernização de uma usina térmica a carvão na República Tcheca, a milhares de quilômetros dali. Alega prejuízos ao seu território provocados pelo aumento da emissão de gases-estufa na atmosfera. No Alasca, 420 moradores de um vilarejo erguido em uma faixa de terra que vem sendo destruída pelo mar tentam abrir um processo contra 20 gigantes do petróleo e do carvão. Especialistas em direito ambiental dizem que isso é apenas o começo.

A reportagem é de Daniela Chiaretti e publicada pelo jornal Valor, 08-03-2010.

O caso da Micronésia pode vir a ser o primeiro processo judicial de um país contra outro tendo o aumento da temperatura da Terra como pano de fundo. No momento, é verdade, não há nenhum processo tramitando em nenhuma Corte, e a iniciativa não tem arquitetura legal formal. Mas trata-se de um punhado de ilhas do Pacífico interferindo nos planos de uma empresa de um país europeu, o que não é nada usual. A Micronésia questionou a decisão da companhia de energia tcheca CEZ de planejar reformas nas instalações de uma térmica movida a carvão marrom, o tipo que contém o mais alto teor de carbono. A atitude abriu uma brecha: ambientalistas que representam a Micronésia estão participando do processo de estudo dos impactos ambientais (o EIA) do projeto da CEZ.

A ação dos habitantes de Kivalina mirou grupos como a Chevron e a BP America, entre outros pesos-pesados do petróleo e carvão. Em 2008 o processo deu entrada na Califórnia, onde muitas das companhias acusadas têm sede. O argumento dos advogados desse povoado do Alasca relaciona a produção dessas empresas, a emissão de gases-estufa, o aumento da temperatura da Terra e a falta da camada de gelo no mar próximo à costa de Kivalina. Sem o gelo, o lugar onde vive a comunidade vem sofrendo erosão acelerada, e os habitantes estão mais ameaçados pelas grandes ondas e tormentas. Terão que se mudar e querem indenização. Procuram colocar uma lupa local em um fenômeno mundial.

Kivalina perdeu a primeira ação, os micronésios não decidiram se e como vão dar cara legal à sua inquietação, e todos sabem que a conferência do clima de Copenhague não produziu nenhum acordo internacional forte para combater a mudança do clima. Mas especialistas do assunto apostam que ações como essas só vão aumentar.

"Sem dúvida é uma tendência", diz o ministro Antonio Herman Benjamin, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), referência no direito ambiental. "Inclusive no Brasil, onde o Judiciário começa a interpretar com 'outros olhos' a legislação ambiental tradicional, sobretudo a de proteção de florestas, de águas e licenciamento." Todas essas leis, lembra, "precisam ser agora lidas numa perspectiva de mudança climática". Ou seja, impactos antes minimizados na flora ou nos recursos hídricos deverão fazer parte de uma análise maior, levando em conta alterações no ciclo de chuvas, por exemplo. "O licenciamento, além dos fatores que normalmente considera, terá que incluir esses aspectos em sua análise ou poderá ser questionado judicialmente como incompleto ou nulo."

Embora movimentos como o da Micronésia ou de Kivalina façam lembrar o início dos processos judiciais contra a indústria do tabaco, que surpreendeu a opinião pública, para provar danos causados pelo aquecimento global existem dificuldades longe de serem resolvidas.

É bem diferente do que acontece no caso de um acidente de trânsito ou da poluição de um rio por uma fábrica. Com o aquecimento global as causas são difusas e supranacionais. "Cada um de nós, em maior ou menor escala, dá sua contribuição diária à mudança climática e deixa uma pegada de CO2", explica Benjamin. Outra dificuldade é que o Direito historicamente associa danos causados pelo aumento do nível do mar ou pela modificação da geografia das epidemias a fenômenos naturais. Por fim, mesmo se a ciência climática diz com clareza que a mudança é provocada por atividade humana ("Não obstante a gritaria, mais política do que científica, de um punhado de céticos", registra), é difícil ligar o dano ambiental e humano aos seus causadores. Como todos contribuem para o aumento da temperatura na Terra, definir a responsabilidade de cada um é ainda terreno nebuloso.

Estabelecer esta relação causa-efeito é uma "dificuldade quase pericial", diz o advogado e ambientalista Fabio Feldmann. É bem diferente do caso dos gases CFC, que causam o "buraco" na camada de ozônio, foram banidos pelo Protocolo de Montreal e eram produzidos por algumas empresas no mundo. Outro entrave é que não há um tribunal internacional específico para tratar de questões ambientais, e elas tendem a ser acolhidas nos fóruns de direitos humanos ou dos animais. "Mesmo assim, ações na área ambiental começam a ser questionadas", diz ele. "Haverá uma tendência no mundo nesta direção. O que existe, hoje, é um déficit institucional que defina as regras em situações do gênero."

Feldmann, ex-deputado constituinte e reconhecido pela elaboração do capítulo do meio ambiente, lembra que no texto constitucional brasileiro há um dispositivo que diz que o poder público terá que preservar o "processo ecológico essencial". Emenda: "O sistema climático do planeta e o ciclo do carbono se enquadram nos processos ecológicos essenciais."

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